AUTOS N. 2008.960096-8
Natureza: Administrativa
Tipo de Processo: Pedido de Providência
Requerente: Conselho Regional de Corretores de Imóveis da 14ª Região– CRECI/MS
Assunto: Averbação de contrato de gaveta na matrícula do imóvel
 
 
PARECER N. 64, DE 3 DE DEZEMBRO DE 2008.
 
 
Preclaro Desembargador-Corregedor:
O Conselho Regional de Corretores de Imóveis da 14ª região – CRECI/MS - pugna, por meio do presente Pedido de Providência, pela edição de provimento que autorize a averbação dos chamados “contratos de gaveta” perante os Cartórios Extrajudiciais, a exemplo do Provimento 26/2007 da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, cuja cópia encontra-se acostada às f. 03-06.
Instado para manifestar sobre o assunto, o Presidente da Associação dos Notários e Registradores - ANOREG/MS - mostrou-se favorável ao pedido do CRECI (f. 13-16), salientando que a averbação serviria apenas para dar conhecimento a terceiros da sua existência, visto que a mesma não confere direito real.
O Superintendente Regional da Caixa Econômica Federal também se pronunciou sobre a matéria (f. 18-28), asseverando que a prática do “contrato de gaveta” não merece o fomento pleiteado, tendo em vista que é realizada às avessas das formalidades ditadas pela legislação de regência – Lei n. 8.004/90, bem como porque desvirtua a finalidade social do Sistema Financeiro de Habitação – SFH, que restringe o acesso ao crédito imobiliário àquelas pessoas que realmente têm direito de gozar dele.
Remetidos os autos ao Departamento Correicional, sobreveio o parecer técnico de f. 47-50, no qual restou consignado que a medida ora requerida tem fim exclusivamente publicista, servindo tão somente para cientificar terceiros acerca da existência da cessão de direitos realizada sem a intervenção da instituição financeira.
É o relatório.
Passa-se ao parecer.
É cediço por todos os problemas e debates jurídicos que envolvem os denominados “contratos de gaveta”, habitualmente utilizados por mutuários do Sistema Financeiro de Habitação – SFH - para transmissão de seus direitos sobre o imóvel adquirido, sem a necessária intervenção do agente financiador.
Por serem pactuados sem a anuência da instituição que financia o imóvel, em desprezo à exigência feita pela Lei n. 8.004/90, que dispõe sobre a transferência no âmbito do SFH, referidos contratos são tidos como eficazes apenas entre o mutuário originário e o “mutuário de gaveta”, não sendo oponível perante o agente financiador, fato este que coloca as partes envolvidas nesta situação à mercê da insegurança jurídica e de inúmeros conflitos.
Com efeito, não são poucos os litígios decorrentes dos “contratos de gaveta”.
Isso porque o mutuário, mesmo tendo “vendido” o imóvel, continua oficialmente responsável pela dívida perante o banco. O “comprador”, por sua vez, mesmo detendo a posse do imóvel, não possui o título de propriedade, haja vista que, perante a lei, o imóvel continua sendo do “vendedor”.
Assim, por exemplo, se eventualmente o mutuário “vendedor” for demandado judicialmente, o bem poderá ser penhorado sem o conhecimento do “comprador”, sendo dispensável mencionar os conflitos daí advindos. É possível também que o “comprador” encontre óbice no momento de quitar o bem e liberar a hipoteca, caso o mutuário original tenha se mudado para outra cidade e não seja possível localizá-lo. Pior ainda se já tiver morrido, pois o imóvel integrará o inventário para os herdeiros e, como há um seguro de vida vinculado ao financiamento, que quita o bem no nome destes em caso de morte do mutuário, poderá haver relutância dos herdeiros em honrar o contrato.
Constata-se, portanto, que o “comprador” pode perder absolutamente tudo o que pagou pelo imóvel, sem qualquer direito.
É certo, outrossim, que o “vendedor” corre seus riscos, os quais não são menores. Cita-se, a exemplo, a hipótese de o novo “comprador” deixar de pagar as parcelas do financiamento, caso em que o nome do proprietário legal poderá ser inscrito nos cadastros de proteção ao crédito, bem como objeto de possível execução judicial.
À parte isso, muitos outros problemas podem ocorrer. Não obstante, a realidade demonstra que essa modalidade de aquisição de imóvel é uma prática comum em todo o país, que aquece o mercado imobiliário e permite a inúmeros brasileiros obter a “casa própria”.
Diante desse quadro fático, a resistência que no passado existiu com relação ao reconhecimento dos “contratos de gaveta” – e que ainda existe para alguns – vem sendo enfraquecida, como bem evidencia a promulgação da Lei n. 10.150/00, que, ao admitir expressamente a regularização dos “contratos de gaveta” firmados, sem a anuência do agente financeiro, entre o mutuário e o cessionário, até 25 outubro de 1.996, indica a intenção do legislador de disciplinar essa situação.
Igualmente conscientes da relevância social e jurídica dos “contratos de gaveta”, os Tribunais pátrios vêm firmando entendimento no sentido de reconhecer como válido o ato de vontade manifestado entre o mutuário originário e o terceiro. Senão vejamos:
AGRAVO REGIMENTAL - SISTEMA FINANCEIRO HABITACIONAL - “CONTRATO DE GAVETA” - LEGITIMIDADE ATIVA DO CESSIONÁRIO PARA REVISÃO DO CONTRATO DE FINANCIAMENTO NO ÂMBITO DO SISTEMA FINANCEIRO HABITACIONAL - CONFIGURAÇÃO - AGRAVO IMPROVIDO.
1. O terceiro a quem tenham sido cedidos os direitos e as obrigações relativos a contrato de financiamento imobiliário celebrado no âmbito do Sistema Financeiro Habitacional possui legitimidade ativa ad causam para pleitear judicialmente a revisão desta avença, ainda que o competente agente financeiro não tenha prestado anuência à referida cessão de direitos.
2. Agravo regimental improvido.
(STJ, AgRg no REsp 891799/RJ, AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2006/0216839-0, MINISTRO MASSAMI UYEDA, Dje 24/03/2008)
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. FCVS. “CONTRATO DE GAVETA”.
TRANSFERÊNCIA DE FINANCIAMENTO. AUSÊNCIA DE CONCORDÂNCIA DA CEF. POSSIBILIDADE.
1. A orientação jurisprudencial desta Corte considera ser o cessionário de imóvel financiado pelo SFH parte legítima para discutir e demandar em juízo questões pertinentes às obrigações assumidas e aos direitos adquiridos através dos cognominados “contratos de gaveta”, porquanto, com o advento da Lei n. 10.150/2000, teve ele reconhecido o direito à sub-rogação dos direitos e obrigações do contrato primitivo.
2. Recurso Especial não provido
(STJ, REsp 868058/PE, Segunda Turma, MIN. CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO,DJe 12/05/2008) “SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO ‘CONTRATO DE GAVETA’.
EXTINÇÃO DO FEITO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. NECESSIDADE DE ANÁLISE DA REPERCUSSÃO DO AJUSTE.
‘Do ‘contrato de gaveta’ decorrem direitos aos cessionários e sua utilização social em larga escala não pode ser ignorada nas decisões do Poder Judiciário’ (TRF 3ª Reg., 2ª T., AC 1999.60.00.001043-7, DJU de 21.02.2001, pg. 1099). (destaques nossos)
Aliás, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça, ao editar a Súmula n. 84, que permite a oposição de embargos de terceiro por quem alegue posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro, vem reconhecendo efeitos jurídicos aos contratos de compra e venda de imóveis financiados e não quitados sem a intervenção dos agentes financeiros e não registrados.
Nesse contexto, atentando-se às diretrizes da atualidade, afigura-se de extrema relevância dar publicidade aos “contratos de gaveta”.
Segundo Nicolau Balbino Filho, “a publicidade no direito registral significa notícia pública. Atua sobre o conhecimento dos interessados, utilizando, para isso, os diversos meios técnicos, e tem por finalidade precípua a difusão.”(Direito Imobiliário Registral, Editora Saraiva, 2.001, página 145).
Por certo, a ampla e adequada publicidade acerca da real situação do imóvel, a fim de que todos possam ter ciência das “restrições” que pairam sobre o mesmo, apresenta-se como uma medida eficaz para amenizar os problemas já declinados.
Ora, a informação, deixando manifesta a real conjuntura do bem, permite ao interessado no imóvel sopesar os prós e os contras do negócio que pretende entabular e tomar a posição que melhor lhe convier, evitando, assim, boa parte dos conflitos decorrentes do desconhecimento acerca da realidade fática do imóvel por terceiros de boa-fé.
Note-se, então, que concentrar no fólio real a notícia do “contrato de gaveta” não só atende ao interesse público, como também agrega segurança jurídica formal, estática e dinâmica.
Nessa orientação estabelecida, de procurar assegurar ampla informação e publicidade a respeito do estado do imóvel, é que se cogita autorizar a averbação dos “contratos de gaveta” no registro imobiliário.
Sem dúvidas, tendo em vista que o “contrato de gaveta” implica em si e, em certa medida, alteração da situação de fato do imóvel, hábil a restringir, na prática, o direito de uso e gozo do bem, mostra-se imperiosa a sua inserção no registro imobiliário, para fins de publicidade, pela via da averbação de mera notícia.
Ressalte-se que a averbação ora tratada não tem o condão de alterar a essência do registro do imóvel, ou seja, não tem caráter constitutivo de direito real, destinando-se tão somente a dar conhecimento da existência do negócio jurídico envolvendo o bem, de forma que não substitui o futuro e indispensável registro da transferência da propriedade, permitindo, contudo, que se atribua um mínimo de segurança jurídica aos negócios imobiliários entabulados por essa via.
Nesse sentido, Miguel Maria de Serpa Lopes preleciona que a averbação “serve, em princípio, para tornar conhecida uma alteração da situação jurídica ou de fato, seja em relação à coisa, seja em relação ao titular do direito real.
Representa, além disso, uma medida complementar, tendente a, pelo meio aludido, tornar o Registro de Imóveis um índice seguro do estado do imóvel, do seu desmembramento, da mudança de numeração, bem como da mudança de nome do titular do domínio, das alterações que possam influir na sua capacidade etc.” (Tratado dos Registros Públicos. 4ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1962, IV volume, p. 196).
Cumpre registrar, neste ponto, que, muito embora o “contrato de gaveta” não esteja previsto no rol do art. 167 da Lei de Registros Públicos como ocorrência passível de averbação na matrícula do imóvel, esta revela-se possível à luz do disposto no art. 246, caput, do mesmo diploma legal.
É que, nos termos do referido artigo, “além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterarem o registro”, o que nos permite concluir que o rol estabelecido no art. 167, II, da Lei dos Registros Públicos, tem caráter meramente exemplificativo, admitindo outras hipóteses que não aquelas expressamente elencadas.
Esse, a propósito, é o entendimento de Serpa Lopes, in verbis: “Analisada, assim, a natureza jurídica da averbação, no que diz respeito ao Registro de Imóveis, passaremos, em seguida, ao estudo de cada um dos casos em que a lei taxativamente a impõe.
Convém salientar, entretanto, que esta enumeração não se deve tomar como uma formalidade restrita aos mesmos, mas, mui ao contrário, de vez que se trata de um ato acessório, tendente a publicar as mutações de índole secundária, em relação ao imóvel ou à pessoa do titular de direito sôbre [sic] o mesmo, lícito é interpretá-lo de um modo mais amplo, admitindo-se a averbação mesmo para outros atos ou fatos análogos, ou ainda que simplesmente interessem a uma publicidade mais completa, acêrca [sic] da situação do imóvel em todos os seus sentidos.” (Ob. cit., p. 199). (destaques nossos)
Do mesmo modo posicionam-se Walter Cruz Swensson, Renato Swensson Neto e Alessandra Seino Granja Swensson. Confira-se: “Observa-se, por fim, que a relação mencionada no art. 167, II, da LRP, é meramente exemplificativa (os arts. 246 e 246 [sic] da LRP referem-se a subrogações e à declaração de indisponibilidade de bens, não relacionadas no art. 167, I).” (Lei de Registros Públicos Anotada, 4ª ed. rev. atual e aum. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006. p. 625) (destaques nossos) Idêntica orientação, salvo melhor juízo, deve ser adotada no tocante aos “contratos de gaveta”, atendendo-se, destarte, à necessidade de dar publicidade à condição dos imóveis objeto de tais pactos.
Nessa senda, a averbação dos “contratos de gaveta” no registro imobiliário nada mais fará do que tornar pública a situação fática dos imóveis em questão, para ciência de todos e principalmente de eventuais adquirentes do bem, os quais terão conhecimento das restrições, ônus e obrigações que pesam sobre o imóvel adquirido.
À vista de todo o acima exposto, o parecer que submeto à elevada consideração de Vossa Excelência é no sentido de ser atendido o Pedido de Providência formulado pelo Conselho Regional de Corretores de Imóveis da 14ª região – CRECI/MS, com resposta positiva quanto à possibilidade de averbação de mera notícia dos chamados “contratos de gaveta” perante os Cartórios Extrajudiciais, a exemplo do Provimento 26/2007 da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, bem como do Provimento 037/2008 da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Mato Grosso, que segue em anexo.
 
Campo Grande, 03 de dezembro de 2008.
 
 
Ricardo Gomes Façanha
Juiz de Direito Auxiliar da CGJ/MS
 
DECISÃO DO EXCELENTÍSSIMO SR. CORREGEDOR-GERAL DE JUSTIÇA
AUTOS N. 2008.960096-8
Natureza: Administrativo
Tipo de Processo: Pedido de Providências
Vistos.
Homologo na íntegra o parecer ofertado pelo Juiz Auxiliar Ricardo Gomes Façanha, acolhendo também a minuta do Provimento que o acompanha.
Comunique-se ao Conselho Regional de Corretores de Imóveis da 14ª Região – CRECI/MS, bem como aos Serviços Notariais, para cumprimento, e aos Juízes Diretores do Fórum, encaminhando-se a todos cópia do parecer, do Provimento e deste despacho.
Expeça-se, ainda, ofício à Associação dos Notários e Registradores – ANOREG/MS - e à Caixa Econômica Federal, remetendo-se cópia do parecer, do Provimento e deste despacho.
Publique-se no sítio eletrônico do TJMS.
Expeça-se ato normativo nos termos da minuta de provimento.
Satisfeitas as formalidades, arquivem-se.
 
Campo Grande, 03 dezembro de 2008.
 
Des. Divoncir Schreiner Maran
Corregedor-Geral de Justiça
 
 
DJMS-08(1871):2-3, 10.12.2008